15.2.07

sobre a pauta da semana

É preciso que o horror seja escancarado para pensarmos em soluções que detenham a violência que tem se alastrado por aqui.

Com a morte do pequenino João Hélio Fernandes, autoridades, a imprensa e cidadãos ficaram chocados. Começou um movimento de protesto contra a barbárie. Uns defendem, é claro. Mas outros dizem que de nada adianta pensar em soluções "no calor da emoção".

Hoje, em sua coluna na página A6 do jornal O Estado de S.Paulo, Dora Kramer escreve um excelente artigo sobre o assunto, intitulado "O motor da emoção". Para os que não leram, dedico esse espaço do Texto da Gaveta às palavras da articulista.

O motor da emoção*
Dora Kramer

Se o Brasil fosse um país racional, os apelos dos presidentes da República, do Supremo Tribunal e da Câmara para que não se discuta violência e criminalidade em momentos de grande comoção seriam muito adequados. Um debate racional sempre tem mais chances de alcançar melhores resultados que uma discussão emocional.


O problema é que o Brasil é um país quase que só movido a sensações. Na política prova disso são os critérios do eleitorado para a escolha dos governantes executivos e representantes legislativos, muito raramente baseados na competência. Os atributos de 'carisma', identificação pessoal e capacidade de tocar os corações preponderam sobre a racionalidade no exame das características de eficiência, caráter e conduta do candidato.

A suscetibilidade a emoções também domina o cotidiano, notadamente em relação ao tema que mais nos infelicita, a segurança pública. Diante do descalabro, todas as indignações explodem para, quando arrefecidas pelo tempo, repousarem na mais completa indiferença até que o horror desperte de novo a revolta e, com ela, o sentimento da providência urgente.

Não convém, portanto, desperdiçar esse sentido de urgência. Por mais que possa estar misturado ao desespero, nunca será tão maléfico quanto a paralisia, hoje mais próxima da catatonia.

A moderação é boa, e, em autoridades, indispensável. Mas nesta altura dos acontecimentos e ante a repetição do mesmo roteiro de altos de baixos e da falta de uma posição veemente e ativa do aparelho de Estado, soa como uma espécie de rendição à fatalidade.

Aos criminosos nada mais confortável que o lado da legalidade invocar os preceitos da moderação. Eles não são moderados nem tampouco racionais. São tratados com toda a cortesia pelo lado de cá, que não pode quebrar o compromisso com a legalidade, mas também não pode continuar renovando eternamente o contrato legal feito em cenário menos selvagem.

Não se trata de responder com selvageria igual, mas de uma defesa mais contundente da sociedade legal, de fazer prevalecer a lei do mais forte. Não nos termos da selva. Nas condições da civilidade que, para isso, precisa estar na posse de toda sua energia - por que não? - emocional. É ela que manterá acesa a mobilização popular, único motor eficaz para impulsionar o poder público, cuja tendência, quando não há cobrança e pressão, é de se acomodar em suas questões internas em detrimento do interesse externo.

Discute-se no governo, no Congresso e na imprensa quem será o novo ministro da Justiça, mas não se fala sobre o essencial: qual é mesmo o pensamento da administração pública federal a respeito do que fazer? É a redução da maioridade penal? É a construção de presídios? É a limpeza das polícias? É o endurecimento da lei? É a violência de Estado?

Talvez tudo junto e mais a consciência de que o desrespeito (seja pequeno ou grande) à lei não pode continuar a ser um valor social e culturalmente aceito, e de que os problemas difíceis de resolver ficam cada vez mais graves e insolúveis quando varridos para debaixo do tapete da indiferença.

Indiferença, esta, aliás, atrás da qual a cada dia menos temos oportunidade de nos esconder. Não por vontade, mas pela imposição dos fatos.

Como ponderou o deputado Fernando Gabeira com precisão, a propósito dos chamados à moderação, assim que a hediondez da morte do pequeno João Hélio provocou nova onda de tomada de consciência sobre o perigo que ronda a todos: não há mais momentos de tranqüilidade no tocante à violência, nunca mais haverá períodos de normalidade se algo não for feito para conter a seqüência de barbaridades que dizima as vidas e insensibiliza as almas.

O que fazer exatamente ninguém sabe, mas todo mundo sabe que algo precisa acontecer para tirar o País desse moto perverso de substituição paulatina da atrocidade de ontem pela monstruosidade de hoje que, em perspectiva, sempre será menor que a bestialidade de amanhã.

*Artigo publicado na página A6 do jornal O Estado de S.Paulo em 15 de feveiro de 2007

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