10.8.06

Da coleção de vinis

O primeiro texto tirado da gaveta tem algo de especial. Tentei falar um pouco da minha ligação com o meu avô. Aí está:

Ouvia as histórias. Diziam: “ele é muito inteligente, poliglota, conhece arte e música clássica como ninguém”. O encanto seria inevitável, como de fato foi. Da infância nada é muito intenso na memória – como se de propósito tivesse apagado qualquer resquício daquela época -, mas, mesmo assim, algo a liga àquelas histórias. Existiram os vinis. Neles, ela sabe, ficaram guardados todos os bons momentos que viveram juntos (e que poderiam ter vivido). Desde bem pequena tinha a certeza de que os LP’s seriam uma ligação com o passado – não saudosista, mas confortante. Em cada uma daquelas faixas circulares, encontraria os ensinamentos que não lhe puderam ser dados. Ela decidiu: as músicas pelas quais ele se apaixonou seriam os primeiros objetos de sua casa.

Era muito nova. Para eles, uma criança apenas. Mas, aos nove anos, já sabia que as bonecas estavam num daqueles baús esquecidos pela vida. Não lhe faziam mais falta. Ela só queria que ele estivesse bem. Tinha medo, por isso cuidava com atenção. Acompanhava o seu ritmo para não o deixar cair. Ainda conversavam. Ele contava histórias que ela já não consegue lembrar. Mas sabe que eram boas e a faziam sorrir. Tinham os livros também. Discos e livros na mesma estante da sala. O tapete e as cortinas verdes. As poltronas. Ele sentava na que ficava à esquerda. Aos sábados, não era servido o jantar. Todos esperavam o café, o pão e o bolo quentinhos. Ele já não tinha uma expressão alegre, mas também estava lá. Ainda tinha o equilíbrio que perderia pouco tempo depois.

Depois de um erro médico durante o transplante de coração, perdeu os movimentos. Quase todos. Tinha um coração jovem, mas não poderia aproveitá-lo. Viveria, a partir de então, os anos que lhe ainda fossem concedidos, na cama. Ela estaria lá. Forte como nunca, mas ainda muito criança para eles. Completará 11 anos e nem percebera que as festinhas aconteciam, que as meninas já não odiavam os meninos, que alguns já se achavam namorados. Ela não queria saber daquilo. Nada lhe interessava. O sono era leve. Acordava com qualquer ruído e corria para o quarto dele: “você está bem?”. Quando a resposta demorava, quase se desesperava, mas tentava mais uma vez: “está tudo bem?”. “Estou”... só então voltava a dormir.

Era um domingo. Outubro de 1998. Ela tinha 13 anos e arriscava-se na cozinha. Naquele dia 18 fez um bolo de chocolate – sua especialidade. Ele não comia sozinho. Precisava de ajuda. Ela deu-lhe na boca. De madrugada algo aconteceu. Ele sentiu-se mal, vomitou. Ela entrou em pânico: acreditava que tivesse sido o bolo de chocolate. Ligaram para a ambulância. Ele a olhou e mais nada precisaria ser dito. Ela saberia que seria a última vez que ele estaria ali. Quando partiram para o hospital, alguém falou: “não se preocupe porque ele vai voltar”. Ela sabia que não.

Filho dos imigrantes sírios da cidade de Iabrud, Antônio Abrahão Arbex e Sultana Assaf, Abrahão Antônio Arbex, nasceu em Rezende, no Estado do Rio de Janeiro, em 12 de agosto de 1925. No final do século XIX, imigrantes sírios, principalmente homens, vieram para o Brasil em busca de uma nova vida. O avô de Abrahão, de quem ele herdou o mesmo nome e sobrenome, chegou ao país em 1895 e, de acordo com o Dicionário das Famílias Brasileiras, de Cunha Bueno e Carlos Barata, se estabeleceu na cidade mineira de Juiz de Fora. Depois de algumas conquistas em terras desconhecidas, os sírios voltavam ao país natal para constituírem família. Assim aconteceu com o avô de Abrahão: de volta à Síria, casou-se e teve filhos, um deles Antônio Abrahão Arbex, pai de Abrahão Antônio Arbex.

Na adolescência, Abrahão foi morar com a família na mesma cidade em que seu avô havia estado pela primeira vez quando chegou ao Brasil. Foi estudar Contabilidade na Universidade Federal de Juiz de Fora e, em meio aos estudos, conheceu Luiza Tarma. Apaixonaram-se. Namorados, freqüentavam os bailes da cidade e eram conhecidos como o melhor casal de dançarinos. Mas, como nas novelas, a história de amor entre Abrahão e Luiza seria interrompida: ele conseguira um emprego na cidade do Rio de Janeiro.

Foram dez anos separados, mas o destino – ou o acaso – levou Abrahão de volta à cidade mineira. Luiza, cinco anos mais nova do que ele, ainda estava lá. Casaram-se em 14 de julho de 1962 na Igreja Melkita Católica. O casamento de Abrahão e Luiza foi o primeiro a ser realizado na Igreja que pertence à família Arbex. Esse era apenas mais um capítulo da história Abrahão e Luiza, que agora também seria uma Arbex.

Casados, mudaram-se para São Paulo e tiveram uma filha. Maria Luiza Tarma Arbex nasceu em 28 de julho de 1963, um ano e uma semana depois do casamento. Na capital paulista tornaram-se comerciantes. Lojas de moda masculina, feminina e íntima deram o sustento e o sucesso à família durante muitos anos. Em 1982, o casamento de Maria Luiza com Sérgio Roberto Pinhata e, três anos depois, o nascimento da primeira das três netas. Em 18 de janeiro de 1985, Abrahão conheceu uma de suas mais ardorosas fãs, Thais Tarma Arbex Pinhata, a menina que levaria a sua coleção de LP’s para qualquer lugar que fosse.

4 comentários:

Anônimo disse...

Thata, adorei a idéia de "Textos na gaveta" e a matéria sobre seu avô. Beijão

Anônimo disse...

linda! Este eu já conheci, li ontem, hehehe. Que bom que agora você tem um blog para eu também poder visitar seus mommentos de escrita. Beijos, Beijos

moça dos olhos d'água disse...

ai que você me faz chorar logo no começo da segunda-feira... =,)
a vida nos fez mesmo muito parecidas, minha querida. gosto demais de ti, esteja certa disso. beijo enorme.

Anônimo disse...

Lindo o texto sobre seu avô. Eu também já escrevi um sobre o meu... mas faz tanto tempo que ficou perdido entre os bits e bytes do ciberespaço. Uma pena. Pude revivê-lo através do seu. Beijos.